domingo, 30 de setembro de 2012

As almas dos animais e as decisões humanas

Hoje, 30 de setembro de 2012, faço 26 anos. Mas eu e minha esposa resolvemos fazer uma festinha antes, no dia 29, para não importunar o domingo dos amigos. Bem, sábado é um dia mais adequado para sair, "vamos antecipar, no outro dia deixamos para a família, mais entre a gente". Talvez tenha sido um erro. Por causa dessa ideia, vi uma cadela sendo atropelada, perto de minha casa. 


Estava indo buscar três amigos em uma avenida perto de casa. Eles estavam de carro, mas não sabiam como chegar em minha residência, já que os caminhos além daquela avenida eram complicados e escuros. Encontrei-me com dois. Resolvemos esperar o outro. Pois aconteceu, alguns poucos minutos depois, virei-me para outra direção e vi um cão ser atropelado. Em seguida, o som da agonia, estridente e doloroso. Apesar de não ser uma pessoa, doía como se fosse. Minha primeira reação foi de correr em direção ao vira-lata, para tentar socorrê-lo. Meus amigos pareciam dizer algo como "Já era, vai morrer, tem mais jeito não". Enquanto caminhava (o acidente ocorrera a uns trinta metros de onde eu estava), pensei um pouco e tirei minha camisa. Enrolei em minha mão para me aproximar do cão e não correr o risco de ferimentos por mordida. Quando me aproximei do cão, virei para o carro que havia atropelado o animal, que estava bem perto. Olhei para o motorista e a única coisa que enxerguei foi um jovem assustado, dizendo "Não posso fazê nada, sai fora, sai fora!" Nas feições que encontrei pela vida, a dele não aparentava nem 17 anos. Ainda cheio de espinhas no rosto. Mas aparências sempre enganam... Não importa. 

Disse a ele que pegasse o cão, colocasse no carro e levasse para alguma clínica. Percebendo que não dissera algo bom, consertei com um "Eu te ajudo!". Algum outro molecote de boné saiu do carro, da porta de trás, do outro lado. Viu a cena como se estivesse vislumbrando a morte. Entrou no carro e disse "Sai fora". Insisti com o motorista que fizesse alguma coisa. Insisti que iria ajudá-lo, que levaria o cão comigo se precisasse, que o carregaria para dentro do carro. Ele repetiu "Não posso fazer nada", e foi embora.

Olhando melhor, percebi que era uma cadela, com tetas cheias de leite. As patas traseiras foram esmagadas. Muito sangue derramava daquela região. Enrolei a camisa um pouco melhor e me aproximei de seu focinho. Já sabia que cães machucados mordem forte. Além disso, havia o perigo de ser mordido e pegar alguma doença. Realmente, levei uma mordida na mão, mas só a camisa foi prejudicada. Ficou cheia de sangue, mas não furou. O sangue não saiu da superfície da "luva", mas serviu para deixar claro o fim daquela cadela. 

Tentei empurrá-la para a beira da pista, para a sarjeta. Ela rosnava e tentava me morder. Mas continuei insistindo, para que ao menos ela se arrastasse. Não adiantava. O sinal do cruzamento adjacente abrira, e os "carros" estavam apressados como sempre. Todos passaram lentamente, como se quisessem entender o que um "louco" como eu fazia ali, no meio da pista. Alguns murmuravam algo triste quando olhavam mais de perto. Alguns me chamavam de monstro, como se eu fosse o responsável por aquilo. Percebendo que a cadela não sairia dali, fui para a calçada mais próxima sem ser o canteiro central (que era mais perto de onde ela estava). A cadela, para minha surpresa, se arrastou com as patas dianteiras até minha direção. Deitou-se na sarjeta, bem à minha frente, como se estivesse se preparando para dormir (assim como faz meu caozinho aqui em casa, quando vai dormir). E fixou os olhos em mim. Talvez por me achar uma ameaça, já que nenhum transeunte ou curioso se aproximava. 

De repente ela desviou o olhar para o ferimento. Parecia tentar lambê-lo, mas não conseguia, e se encolheu com o pescoço para perto de seu peitoral. Ali ficou, com os olhos abertos, até que pareceu cansada e esticou mais o pescoço, ficando completamente esticada no chão. Sempre com os olhos abertos, olhando para cima, dirigindo o olhar para mim. O sangue continuava saindo. 

Comecei a chorar muito. De repente o sofrimento do animal despertou em mim algo que sentira apenas por pessoas até aquele momento. Chorei, muito! Peguei meu celular e liguei para o 192, para pedir alguma orientação do que poderia ser feito. A mulher que me atendeu demonstrou uma inabilidade tremenda, tanta que nem sei como descrever. Liguei para o 190. Aí sim, uma outra mulher, de voz calma e serena, me disse para tentar ligar para dois números do Zoonoses. Mas adiantou que "Eles provavelmente não atenderão". Dito e feito! Tentei ligar para uma amiga que conhecia um hospital para animais. Mas ela tem o péssimo hábito de não atender telefonemas, porque a incomodam. Pensei logo um "Filha da puta, pra quê usa celular então?!" Liguei para a casa dela, e ninguém atendeu. Mas tudo bem, ainda havia algo a fazer. 

Minha tia, que é veterinária e mora no Paraná, estava aqui em Fortaleza. Ela poderia me orientar! Bem... Apesar dela não poder fazer nada, parece ter sido a única a me confortar. Na verdade, conversar com ela foi um dos maiores alívios que já senti na vida. Ela ainda tentou ligar para algumas clínicas particulares, para saber se alguém poderia sacrificar a cadela ou, quem sabe, tratá-la a tempo. Dispôs-se a usar do próprio dinheiro para isso. Mas já parecia tarde demais. Além disso, nenhuma clínica se dispôs a deslocar-se até o local. Todas diziam que poderiam sacrificar o animal, mas apenas na própria clínica, se o levássemos até lá. 

Decidi ir para casa. Guiei meus amigos até minha residência, sem camisa, e precisei dar muitas explicações, a todos os convidados, sobre minhas lágrimas, minha falta de camisa e minha dificuldade em sorrir. Obviamente, alguns riram muito da situação e da minha reação. Às vezes acho que certas pessoas estão acima do bem e do mal, do certo e do errado, dos sentimentos e, às vezes desconfio, de qualquer outro ser humano, quanto mais de um mero cão de rua. 

Ainda chorei muito, horas depois do ocorrido, e decidi escrever este texto depois que as lágrimas acabaram. Ainda fico pensando no que pode ter acontecido comigo mesmo para ter reagido assim. Ainda tenho dúvidas sobre meu comportamento, sobre o que me levou a chorar e sofrer com um mero cão de rua. Já vinha me esforçando para não comer mais carne. Tudo lentamente. Vinha reduzindo quantidades de carne. Vinha substituindo carne vermelha e aves por peixes. E reduzindo, sempre. Depois do ocorrido, minha vontade de reduzir ficou mais forte, mais firme. Sinceramente, não quero mais comer carne. Sofro por isso como alguém com síndrome do pânico. Mas não é síndrome do pânico. Não é isso. É algo mais. 

De repente os textos de Peter Singer ganharam novos significados, novo rumo para mim. De repente os chatos vegetarianos começaram a parecer bacanas, interessantes. De repente a noção de como tratamos os animais se revelou terrível. Tem muita coisa errada nisso tudo. Uma mera cadela de rua, vira-lata com pé-duro, agonizando ao meu lado, revelou outra face do mundo. Uma visão escrota de como tudo vem acontecendo, de como existem muitas atitudes erradas sobre os animais, decisões humanas. Paul McCartney começou a fazer mais sentido. Não pelas músicas, mas pela vida livre de comidas de origem animais e seus derivados.

Agora muitas coisas fazem sentido, e outras perdem completamente. Ainda me pergunto: foi realmente a agonia de uma cadela de rua, cheia de leite e atropelada que causou tudo isso? Os animais tem alma? No minimo acho que têm sentimentos e afetos. Uma noite para digerir os fatos e compreender... Tomara!

5 comentários:

  1. Égua gab....não tenho palavras pra descrever o que sinto. Mas compartilho tua visão e tua dor nesse momento. Já pude ver um cachorro ser atropelado enquanto eu passava de moto. Aquilo quase me fez bater a moto.

    Há algo nos animais, especialmente nos cães, sempre brincalhões e dispostos a suportar tudo que vem de nós, que mexe no âmago da minha alma. Ver o sofrimento deles me causa uma agonia tremenda.

    Abração primão. Uma pena ter acontecido no teu aniversário. Ou talvez não.

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  2. Nossa, Gabre. Fiquei emocionada com esse texto. Fiquei imaginando tudo isso que você descreveu...

    Pois é, tem uns vídeos bem carregados sobre como matam os animais que comemos...

    Cara, sinto muito por tudo isso, mas que bom que isso despertou tantos sentimentos e reflexões tão válidas quanto essas em vc.

    Fica bem, meu grande amigo!

    :*

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  3. Caríssimo amigo! Somente hoje li este teu post. Imagino que possam existir vários motivos para a emoção que experimentaste, ao ver atropelada a cadela. Na verdade, tendemos a ver animais como humanos. E não sei se não os estaremos depreciando fazendo tal comparação, já que eles parecem muito mais "coerentes" que os seres racionais... Além da tendência de antropomorfizar todos os seres, acho que existe outra explicação menos usual, vinculada à religiosidade. Para um criacionista, é perfeitamente natural entender que todos os seres vivos possuem um sopro divino, no sentido da energia que emana do Criador quando Lhe concede a vida. Se isso é certo, nossa identidade com outros animais se justificaria pela origem, já que todos somos criaturas, cuja matéria vem do pó, e a energia vital vem de Deus.

    Não sei dizer se os animais possuem sentimentos, ou se apenas seus instintos os levam a ter comportamentos que se assemelham aos humanos. Talvez seja apenas instinto como os nossos. Mas isso não é o importante. O que marca em tua experiência, é a sensibilidade com outras espécies. E isso me parece um modo de respeitar e compreender que existe um Poder que está acima de todos e cada um, nos colocando em condição de humilde igualdade diante das outras espécies. É um sentimento nobre e admirável. Particularmente em nossos dias, em que existe tanta pretensão de que o centro do universo reine no umbigo de cada homem.

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  4. Fiquei profundamente comovida com sua experiência, Gabriel. Eu tenho imenso apreço por animais, especialmente os mamíferos. Não sei como eu reagiria ao ver uma cena como a que vc descreveu. Sou emotiva, talvez eu desmoronasse e não soubesse a maneira correta de agir. Fiquei orgulhosa da sua força e empenho, inúmeras pessoas simplesmente deixariam para lá... Mas sua atitude demonstrou que você tem bom coração, tenho certeza que aquela cadelinha desencarnou ao lado de um ser humano que fez o que pode para salvá-la.

    Eu sofro demais quando vejo qualquer animal sendo maltratado, e muitas vezes me arrisco sendo gentil com uns cachorros e gatos de rua, que até podem me contaminar com doenças. Meu impulso é sempre trazer algum gatinho abandonado para casa, mas meus dois filhotes não permitem, então eu sempre tento encontrar abrigo para eles em outros lares.

    Acredito que a morte não acaba com a vida, mas apenas faz com que o espírito mude de dimensão. Trazendo para a realidade que vc vivenciou, aquela cadelinha deve estar agora habitando o corpo de um outro animalzinho. Não fique mais recordando o sangue e o sofrimento dela, pois isso já passou e já deixou seu legado: uma nova consciência em seu modo de enxergar a vida. Isso foi o melhor presente que você poderia ter recebido, embora tenha sido muito pesado... Mas o peso nunca é maior do que nossa capacidade de suportá-lo. E aposto que vc já sabia disso.

    Paz e Luz!

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